Além
de gratuidade, esperança e medo, podemos inferir também que os sonhos e os
desafios fazem as criaturas se moverem de suas zonas de pleno conforto rumo ao
desconhecido em busca de sentimentos nobres que as aproximem de Deuses de um
Olimpo assaz modesto e desglamourizado. Olimpo esse no centro de um universo de
batalhas psíquicas onde duelam ego, Id, self e a imagem que construímos a
partir da percepção dos outros. O esporte é geralmente o palco mais honesto e
politicamente correto para incitar esse espírito belicista que habita a
superfície de todos nós. Muitos são os propósitos que impelem humanoides a se
desafiarem em atividades de risco e de extremo desgaste físico. Dentre os
propósitos e ou motivos que me ocorrem agora, podem estar a fama meteórica,
status, coragem, determinação, dinheiro, reconhecimento, apreço pelo risco, notoriedade,
vazio interior, ócio, autoafirmação, exposição exacerbada em redes sociais,
falta de opção, contato com a natureza, autoengano, carência, etc. Não
importa... O seu motivo é autossuficiente para movê-lo adiante e sempre que
precisa encontra um arcabouço de justificativas pra lá de convincentes para
mantê-lo vivo. E não se busca aqui fazer absolutamente nenhum juízo de valores,
já que todos temos buracos de autoestima que precisam frequentemente serem
preenchidos. Diferentemente do gato ou do pombo, que vivem de uma única forma
suas existências sem improvisos e adequações aos solavancos da vida, nós, seres
humanos, criamos, modificamos e reconstruimos nosso destino com a prerrogativa
do livre arbítrio a cada instante. Por isso, quem está magro pode engordar,
quem é obeso pode fazer uma cirurgia bariátrica e ficar esbelto em tempo
recorde, homens se tornam mulheres e vice-versa, seios pequenos são
multiplicados por 5 mediante doses generosas de silicone, peitos gigantes são
lipoaspirados para perder volume, negros se tornam brancos, brancos se
escurecem, cabelos lisos são anelados com o uso de produtos químicos e os crespos
ficam lisos na presença de milagrosas chapinhas. E assim o homem (e a mulher
também) vai modificando cenários para que estes façam sentido à sua existência.
E a obsessão em superar seus próprios limites faz dos humanos uma espécie
interessante, pois mesmo com plena consciência de seu fim, luta
desesperadamente para manter-se vivo em uma vida onde a morte pode chegar a
qualquer momento. Nesse contexto filosófico que beira a insanidade mental, duas
agremiações ciclo esportivas de peso se uniram em uma joint venture sem
precedentes para viabilizar um mega ultra passeio ciclístico intermunicipal
denominado “Desafio de Cora”: Os Pedreiros
da Montanha, agremiação ciclo-gastronômica-festiva tradicional sem fins
lucrativos da alta casta goianiense e “Os Katrakas”, outra agremiação ciclo
esportiva de altíssimo nível moral e cultural onde valores como irmandade,
lealdade e espírito de grupo predominam. Aos dois grupos juntaram-se alguns
intrépidos ciclistas que conferiram mais bravura ao desafio.
O Caminho
de Cora, objeto desafiador da fusão das agremiações, foi idealizado seguindo o modelo
do Caminho de Santiago, na Espanha.
Com 282 quilômetros, a trilha repete o percurso
usado pelos bandeirantes há centenas de anos. Entre paisagens do cerrado, o
viajante passa por belas residências dos séculos 18 e 19, ruínas de antigas
lavras de ouro, fazendas e cidades histórias. As casas próximas ao trajeto são
habitadas, em geral, por trabalhadores da região.
O Caminho
começa por Corumbá de Goiás e termina na cidade de Goiás, antiga capital
e local de nascimento da poetisa que deu nome à trilha. Passa ainda por outras
cidades históricas, como Pirenópolis, Jaraguá, Itaguari e Itaberaí. Teoricamente
em todos os sete municípios do trajeto há locais para hospedagem e
infraestrutura de apoio aos ciclo viajantes, especialmente nas cidades maiores.
Teoricamente... Falaremos mais sobre isso adiante.
Devemos aqui prestar uma
singela homenagem ao ciclo ativista Rômulo Augusto, calvo pioneiro de Goiânia, que
desde o início de 2018 vem incentivando e promovendo encontros festivos com
consumos exagerados de barbitúricos e álcool em prol da tal ciclo viagem. Autor
de ideias brilhantes e auspiciosas, bem como projetos de engenharia refinada,
desenvolveu um sofisticado sistema de alforjes bélicos de alta durabilidade e
robustez baseados em arcabouços plásticos para acondicionamento de dejetos
orgânicos. Em função de falhas estruturais detectadas durante um rigoroso teste
em laboratório de provas, resolveu abortar momentaneamente o projeto e decidiu
pela confecção de alforjes convencionais de tecido, os quais o acompanharam
durante todo o percurso.
Após uma rotina extenuante de
treinos durante cerca de 60 dias, finalmente o grupo sentiu-se pronto e
confiante para iniciar o desafio mais longo e difícil de sua história.
Idealizado para cobrir os 282
km em 3 dias, o passeio teve como ponto de partida a pacata Corumbá e como destino
a histórica cidade de Goiás, passando por diversos vilarejos e povoados, com
previsão de pernoite em São Francisco e Itaguari. Catorze eram os inscritos
para iniciar a epopeia: Rômulo, Rosinha, Gastão, Marcelo Dotô, Junão Betoneira,
Carlos Júnior Glick, Wilson Tiradentes, Pink x (Alyne + Leo), Wislei, Daniel, Guila,
Fred e Zander. A expectativa era que mais 2 bicicleteiros se juntassem ao
grupo principal no último dia (Davi Fanfarrão e Thiago).
Muitos(as)
foram os(as) críticos(as) do projeto, alegando por pura inveja e/ou mau agouro
tratar-se de uma insanidade executar uma ciclo viagem de aventura de tamanha
magnitude sem veículo de apoio. Afinal, caso ocorresse alguma intercorrência
que abalasse a integridade física de nossos heróis ou um problema técnico nos
equipamentos, todo o grupo poderia ser penalizado, podendo inclusive os
enfermos correrem o risco de terem suas vidas ceifadas pela total inoperância
de auxílio médico em tempo hábil devido às condições inóspitas de determinados
pontos do percurso. Confiança extrema no pai celestial, falta de discernimento
cognitivo, excesso de burrice e pitadas de negligência nos deram o impulso
suficiente para ignorar os tais críticos e partir.
A van que nos levaria a
Corumbá, e que partiria impreterivelmente às 5h, saiu pontualmente atrasada do
Alphamall às 5:35h, levando, além de seus folclóricos atletas, uma carreta com
as 14 bikes semi-desmontadas rumo ao nosso destino.
Iniciaremos agora o relato da
ciclo viagem com imparcialidade e isenção.
Após um café da manhã nada civilizado
em Corumbá, os bárbaros que minutos antes rosnavam e se estapeavam por pães com
ovos e copos de café, iniciaram pacatamente a romaria com destino inicial a
Pirenópolis, onde um novo lanche seria realizado para reposição das energias.
Sem intercorrências e com belo visual, os 14 ciclistas venceram sem
dificuldades o percurso.
Pirenópolis está incrustada
nas profundezas de uma cratera e para sair de lá não existem alternativas senão
subir. O sol já maltratava sadicamente as carcaças ainda preservadas dos nossos
heróis quando pegamos o caminho rumo ao retiro de satanás, também conhecido
como morro de Caxambu, uma aberração topográfica hostil que também empresta seu
nome a um vilarejo nas imediações. Seguindo a trilha pelo GPS, que
provavelmente foi mapeada por um empresário do segmento funerário, fomos
induzidos a entrar erroneamente no meio de um pasto que então nos conduziu a
uma mata fechada que levou nossas forças. Alguma boa alma satânica conseguiu
encontrar a trilha demarcada em direção ao morro de Caxambu. Pense num
desconforto medonho subindo esse morro empurrando bikes pesadas e com sérias
restrições de hidratação. Se subir já foi difícil, descer era a própria cena do
inferno, pois o terreno muito íngreme e acidentado não permitia que nos mantivéssemos
em cima das bikes. Confesso que esse foi um ponto importante de
desestabilização psicológica. Depois de superarmos a protuberância demoníaca
encontramos a fazenda do Sr. Quinzin, que gentilmente nos esperava para o
almoço mediante contraprestação financeira de Vintin reais. A exótica galinhada
servida fora carinhosamente preparada com cortes assimétricos de galináceos
pré-cambrianos contendo pé, rabo, pescoço, unha, coluna, bico e costela. Com a
fome e o esgotamento, tudo estava bom. Como não havia água potável para encher
as mochilas e garrafas, partimos rumo a Caxambu na esperança de encontrar o
líquido precioso. De fato, encontramos... Haviam duas (eu disse duas) garrafas
de 500ml geladas na venda. Água quente com sede é pra zerar os estoques de Caryocar brasiliense de um
importante estado da região centro oeste (cabá com os pequi do Goiás), mas
ainda assim bem melhor que morrer queimado.
A próxima cidade do roteiro
era Radiolândia e depois, finalmente, São Francisco, onde repousaríamos as
carcaças deterioradas. E os problemas continuaram...
A princípio, a partir de
Radiolândia, onde fizemos uma pequena pausa para hidratação, lanche e
comunicação com o mundo através da utilização do wifi do mercado local, seriam
mais 22 km (uma Juriti) para chegar ao destino do dia. A impressão é que
estávamos girando no rolo, pois depois de rodar uns 15 km ainda tínhamos os
mesmos 22 km para chegar a SF. Rodamos mais uns 12 km e segundo o GPS seriam
apenas mais 20 km para chegar. E isso ia se repetindo com frequência... A esse
ponto o bom humor do grupo já havia acabado por causa da falta de água, do esgotamento
físico e das incertezas acerca da chegada. Chegamos às suntuosas instalações que
nos acolheria em SF por volte de 22h. Uma superfície horizontal para repousar o casco, uma
boa noite de sono e um marmitex robusto era só o que queríamos. Rômulo Augusto
já havia feito o serviço de concierge e reservado as acomodações de acordo com
o nível de luxo que cada um gostaria de ter. Eu e Doc solicitamos a suíte
presidencial plus, que diferia da master por oferecer aos seus ocupantes cama, banheiro,
uma extensão de tomada e uma cadeira de plástico amarela. No banheiro, sem box e
com louças da segunda metade da era vitoriana, me chamou a atenção um sabonete surrado
de coloração verde com muito mais cabelos que Rômulo Augusto. Parecia ser uma
espécie de amuleto usado pelos viajantes astecas que pernoitavam naquele dormitório
em épocas longínquas. Achamos prudente deixá-lo intacto por medo da
possibilidade de invocação de entidades demoníacas de alto índice de
macabricidade. O chuveiro dispunha de 4 posições: "verão", “Labaredas
de Lúcifer”, "Cuiabá" e "Kombi lotada às 15:25h em meados de
setembro em Araraguaína - TO". Optei pela posição verão, tendo sido
agraciado com flocos finos de neve desidratada. Doc, assado até a tampa, tomou
banho de caneco em cima do andador e quase perdeu o jantar. Em seguida nos encontramos
no restaurante da estalagem para desfrutar de um poderoso marmitex carinhosamente
preparado pela sempre sorridente e simpática dona Edi, a proprietária do
estabelecimento. Derrubamos com desenvoltura a cisterna de comida e aqui cabe
uma homenagem ao nosso querido Junão Betoneira, que não satisfeito por comer até
o alumínio de sua marmita, ainda arrematou restos de terceiros que repousavam
pela mesa, provocando a ira dos cachorros de rua que já se reuniam por ali na
esperança de alguma sobra de alimento.
Já decididos por não mais
continuar a aventura sem noção, Eu, Rosinha e Doc partimos no dia seguinte rumo
a Goiânia. No momento em que avistamos o carro de Elvira, minha caríssima
cunhada que veio nos salvar, nos abraçamos aliviados em prantos de tamanha emoção.
No segundo dia, as 8:37h, partiram
os remanescentes rumo a Itaguari, onde se juntariam aos janelinhas Thiago e
Davi para continuarem a saga ciclo turística. Ainda pela manhã o grupo acabou
se perdendo em um matagal nas imediações de Jaraguá e novamente os integrantes questionaram-se
sobre a continuidade da caravana. Seguiram pelo asfalto e chegaram a Jaraguá. Ali
chegando, o sempre solícito Leo Pink (que faz absoluta questão de nunca deixar
ninguém para trás) teve fadiga generalizada e teve que ser socorrido pelos
demais ciclistas. Ficaram todos no posto em Jaraguá por quase uma hora até o
completo restabelecimento de forças do incauto atleta e, como forma de
retribuição, Leo disparou na frente deixando todos para trás, numa demonstração
clara de espírito de grupo e altruísmo, valores tanto enfatizados na preleção do dia
anterior ainda dentro da van. Outros pequenos contratempos no percurso não
tiraram o brilho daquele dia ensolarado, que terminou na pensão em Itaguari
como muita conversa fiada e 389 cervejas, já na companhia de Thiago, Davi, Renata
e Rosinha.... Sim, Rosinéia voltou para prestigiar a procissão e consumir álcool
(não necessariamente nessa ordem).
No terceiro dia Davi pedalou singelos
10 km e teve problemas técnicos em sua bicicleta e foi forçado a voltar. Totó,
que estava nas imediações da cidade participando de um evento na fazenda de
Caras, o acolheu na propriedade, lá permanecendo até minutos antes da chegada
dos ciclo turistas na cidade de Goiás.
Apesar dos riscos inerentes à
atividade e a total falta de suporte, a ciclo viagem foi um sucesso e
certamente deixou seu idealizador Rômulo de alma lavada. Parabéns a ele pela
determinação e liderança à frente da organização. Da próxima vez sugiro
fortemente que um veículo de apoio seja incluído no planejamento visando
resguardar a integridade física dos aventureiros. Parabéns especial também
àqueles que completaram os 3 dias de viagem pela bravura, coragem, determinação
e força de vontade.
Faço aqui uma menção honrosa sem
ironias ao amigo Katraka Guila, que simbolizou na viagem a essência do espírito
de grupo, cuidado e proteção com a coletividade em detrimento das próprias
satisfações. É a colocação em prática, em situações críticas, do altruísmo de
Jesus de Nazaré, extremamente simbólico e emblemático para uma aventura que
terminou na véspera da Páscoa. É claro que essas características foram
predominantes no grupo, mas alguns naturalmente se destacaram.